ATA-ME - Desatamos o Shibari -
- Revista Alternativa LGBTQ
- 3 de abr. de 2020
- 7 min de leitura

Shibari é um verbo japonês que significa literalmente amarrar, atar. O shibari descende de uma arte marcial chamada Hojojutsu, uma técnica utilizada no período Edo no Japão, para imobilizar prisioneiros de guerra de acordo com sua classe ou importância hierárquica. A cultura nawa (nawa significa corda) no Japão é muito forte, e ela é representada em instrumentos musiciais, rituais de passagem (como o do ano novo japonês), rituais de purificação, para atrair divindades, na decoração, no teatro, nas roupas e claro, nas artes marciais.
Por volta de 1800 o ato de amarrar corpos sofreu uma revalorização erótica, surgindo assim o Kinbaku. O Kinbaku era o ato onde o nawashi (artista de corda) amarrava sua dorei (escrava nas cordas), para subjulga-la e praticar semenawa (tortura nas cordas). O nawashi era um homem geralmente hétero cisgênero, e a dorei uma mulher hétero cisgênero magra, pequena, "delicada".
No século XX o Kinbaku sofreu uma outra revalorização, mais conhecida como estética, e assim surgiu o Shibari. Tanto o Kinbaku como o Shibari valorizam a estética, mas com essa nova revalorização surgiu o aibunawa (gentileza nas cordas), e atualmente ele inclui pessoas fora dos padrões aceitos socialmente, existe diálogo sobre representatividade e diversidade dentro das cordas (pessoas trans, não binárias, gordas, de diferentes raças), equidade de gênero (mulheres passaram a amarrar, além de serem só amarradas), uma prática horizontal (sem troca de poder), uma perspectiva diferente do erótico/sensual/sexual. O Shibari é muito amplo e pode ser praticado de muitas formas. Como uma opção ao bondage, como maneira de apimentar uma relação, como manifestação artística e corporal, de maneira recreativa focada em relaxamento, entre outras.
Para conhecer a prática do Shibari na cena paulista entrevistamos uma instrutora.
Engel é uma rigger e modelo de São Paulo. Seu trabalho com Shibari é focado em conhecimento e relaxamento corporal e interior por meio da condução e conexão dentro da prática, e em representatividade e diversidade dentro das cordas.

Engel teve seu primeiro contato real com a prática em 2016, em uma edição do evento Atados no Parque. Antes disso, pesquisou e absorveu tudo o que pôde lendo conteúdos e assistindo tutoriais on-line.
Desde então Engel tem se aprofundado mais na prática, indo a eventos, participando de workshops, grupos de estudos e trocando muita informação com a comunidade. Começou seus estudos com self tie (se auto amarrando) para praticar os nós iniciais e amarrações básicas de solo, adquiriu mais experiência sendo modelo e aprendendo sobre a prática sentindo em seu próprio corpo, e depois estudando para se tornar rigger e amarrar outras pessoas.
Hoje em dia Engel oferece aulas particulares, sessões, ensaios fotográficos e workshops em alguns estados do Brasil, além de desenvolver projetos sobre diversidade e representatividade em conjunto com a comunidade.
Engel atualmente é uma das organizadora do Atados no Parque, um evento gratuito para praticantes que ocorre uma vezes ao mês; também faz parte da organização do Coletivo Fricção, composto por praticantes que desenvolvem juntos projetos de Shibari, como ensaios fotográficos pela cidade, do Shibari Feminista, um grupo feito de mulheres para mulheres, e do Grupo de Estudos SP, onde praticantes se reúnem para estudar e trocar experiências.

Como foi seu primeiro contato com o shibari?
Eu já havia lido e visto conteúdos on-line sobre, mas meu primeiro contato real com a prática e com outros praticantes foi em uma edição do Atados no Parque aqui de São Paulo em 2016. Fui amarrada por uma mulher, que hoje em dia é uma grande amiga. Dali em diante eu resolvi que queria ser amarrada mais vezes e também que queria aprender a amarrar.
O que te motivou a se tornar instrutora de shibari?
Eu sou formada em Licenciatura em Letras, gostar de ensinar é algo bem enraizado em mim. Na época que comecei a praticar shibari, não existia nenhuma mulher instrutora aqui em São Paulo, somente homens. O meio do shibari acaba sendo bem machista, e eu decidi que queria me especializar para poder ensinar o shibari para outras pessoas de uma maneira acessível e inclusiva, focando em um ensino com mais equidade de gênero, falando sobre representatividade e diversidade dentro das cordas.
Como o shibari é visto e vivido pelas mulheres que procuram suas oficinas?
Meus workshops são mistos, sempre, mas eu faço questão que eles sejam locais seguros para mulheres. Dentro da programação dos meus cursos eu falo muito sobre o machismo, a gordofobia, a desvalorização do trampo de minas que acaba acontecendo dentro da nossa comunidade, e ensino as mulheres a amarrarem e serem amarradas com confiança e da maneira mais segura o possível. Quero que toda mulher que se aproxime do shibari por meio do meu trabalho se sinta linda, forte e capaz de vivenciar o jogo com as cordas da forma que ela escolher.
Quais foram as suas experiências mais estimulantes com a prática?
Tudo no shibari é estimulante para mim. Desde a textura e cheiro das cordas, o estudo constante, a oportunidade de ensinar e compartilhar meus conhecimentos com outras pessoas, até a sensação de vulnerabilidade ao ser amarrada, a sensação de força ao amarrar. O shibari me ajuda a me comunicar e interagir de uma forma que eu não consigo sem as cordas. Me ajuda a enxergar e entender melhor meus próprios sentimentos e os de quem eu pratico, também. Ele acaba sendo um canal de alívio, prazer, relaxamento, auto conhecimento, uma forma de afeto e de liberdade de expressão.
Quais os pontos de maior cuidado com a técnica?
O shibari é potencialmente perigoso mesmo sendo praticado com muito cuidado e atenção. Desde a diminuição da circulação sanguínea, até possibilidade de queda de pressão e lesão de nervo. O tópico mais longo do meu workshop para iniciantes é justamente o tópico de segurança, porque é muito importante conhecer todos os riscos e todas as formas de preveni-los. O mais importante é: para quem quer aprender a amarrar, procurar um instrutor capacitado e responsável, e para quem quer ser amarrado, procurar um rigger (quem amarra) de confiança, de preferência com indicações, e que siga todos os passos para uma boa sessão. A comunicação é o ponto chave.
Qualquer pessoa pode praticar?
Ao meu ver, sim. Existem casos que demandam cuidados mais específicos: pessoas com problema de circulação ou mobilidade reduzida, por exemplo. Antes de amarrar qualquer pessoa, passamos por um processo de negociação que pode levar até uma hora; uma conversa sincera sobre riscos, cuidados, noções anatômicas, particularidades físicas e mentais do modelo (quem é amarrado), para que eu possa adequar meu desenvolvimento na sessão da maneira mais segura e agradável para o modelo, levando em conta todos os mínimos detalhes.

Normalmente o que as pessoas procuram no shibari?
Isso varia bastante. Algumas pessoas me procuram com interesse em aprender para incrementar sua prática pessoal de bondage ou vida sexual, alguns casais me procuram como uma alternativa para se reconectar um ao outro, outras pessoas me procuram mais pela questão estética e artística. A maioria procura relaxamento corporal e auto conhecimento, já que esse é o foco principal do meu trabalho. Mas o shibari é muito amplo e pode ser praticado de diversas maneiras.
Há diferenças nesta busca entre homens e mulheres?
Geralmente quem me procura com interesses voltados para bondage ou vida sexual são homens, em sua maioria. Já as mulheres me procuram mais pelo uso recreativo, porque querem ser amarradas e não confiam em homens para isso, porque querem aprender também como expressão artística. Eu diria que de modo geral, os homens enxergam o shibari de uma maneira mais sexual do que as mulheres. Isso na minha experiência pessoal.
Qual seu maior público?
Para aulas ou workshops, geralmente são casais. Não necessariamente para incrementar a vida sexual ou com alguma relação com o BDSM, acontece bastante de me procurarem porque acreditam que serem amarrados juntos por mim, ou amarrarem um ao outro, os ajude a se conectar e se comunicar de uma forma mais profunda. Para sessões e ensaios fotográficos, geralmente são mulheres.
Sobre praticantes de BDSM que te procuram para incrementar suas práticas, alguém já pediu algo inusitado?
É comum que praticantes me procurem, até porque eu também sou praticamente, tenho bastante contato com a galera aqui do Brasil de maneira geral. Os únicos pedidos inusitados e que acabam me incomodando, são de homens cis que se dizem submissos e querem agendar uma sessão de shibari comigo com "coisas a mais". Geralmente pedem para que eu bata neles, ou xingue, ou maltrate, ou deixe beijar meus pés, etc etc. Minhas sessões profissionais são mais voltadas para aibunawa (gentileza nas cordas), então eu só explico que não é bem assim que eu amarro. Só me sinto confortável para praticar semenawa (tortura nas cordas) com afetos meus, porque acaba sendo uma troca bem mais intensa. A parte difícil é a insistência desses homens, então eu preciso ter um bom jogo de cintura.
Como é sua trajetória dentro do shibari sendo mulher?
Como modelo, eu já sofri gordofobia. Ouvi de alguns homens que meu corpo não ficaria bonito amarrado, que meu peso atrapalharia, que eu nunca poderia ser suspensa, coisas do tipo. Como rigger, é comum que homens que nem me conhecem tentem me ensinar como amarrar, duvidem da minha capacidade e potencial. Como instrutora, é comum também que homens duvidem do meu conhecimento e didática, favorecendo instrutores homens. Basicamente são homens dando pitaco o opiniões não solicitadas o tempo todo.
Mas por outro lado, temos uma rede muito incrível de mulheres dentro da comunidade do shibari, e compartilhamos, estudamos e praticamos juntas sempre que possível. Somos unidas e cuidamos e protegemos uma a outra.

Qual seria a melhor forma de se aproximar da comunidade e da prática, para alguém que não tem conhecimento algum sobre o shibari?
Uma meio ótimo de se aproximar é o Atados no Parque. Ele acontece em vários estados do Brasil, e a comunidade é bem receptiva. Em São Paulo desenvolvemos o Atados no Parque, o Coletivo Fricção, o Grupo de Estudos. Nos reunimos para praticar e trocar experiência pelo menos uma vez ao mês em cada um dos projetos.
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