QUARENTAENOVERS
- Revista Alternativa LGBTQ
- 2 de nov. de 2022
- 3 min de leitura
Texto e fotografia: Simone Almeida

A campanha de vacinação contra COVID-19 teve início para meu grupo de 49 anos, em 26 de junho de 2021. Chego às 8h45min, em Unidade Básica de Saúde, na periferia de São Paulo. Tempo fechado, o inverno por aqui quando não é instável é uma geladeira : frio e seco . Ao atravessar o portão deparo-me com aquela tenda de plástico( por questões sanitárias foi armada no estacionamento) , usada em eventos(antes da peste) com a inscrição “VACINAÇÃO” .Três funcionários em uma mesa, um no tablet e pelo estado do aparelho muito utilizado pelo pessoal da Unidade .Pergunto sobre os documentos necessários (só confirmar os que estavam no meu bolso) para participar desse dia histórico ,afinal , somos todos agentes históricos. A resposta vem junto com um “bom humor contagiante “do atendente que não desvia o olhar do tablet ,“RG,CPF,cartão SUS, comprovante de residência e aguardar na fila” . Meu “Obrigada “ sai enquanto vou juntar-me à pluralidade de quarentaenovers na fila ao ar livre .É a segunda vez que encontro várias pessoas com a idade exata que eu , a primeira foi na maternidade. Passados dez minutos sou toda ouvidos na fila mediana .Uma mulher usando aquele conhecido chinelo com meias fala ao celular , “Avisa pro Pedro trazer minha conta de luz que tá na mesinha da sala” , “Tudo é burocracia nesse país” , diz outra vasculhando a bolsa .Uma enfermeira vem avisando que é preciso estar em mãos o RG,CPF,cartão SUS ,cartão da família e ... o comprovante de residência . Digo que não possuo esse cartão da família. Ela me olha como se desejando uma falha em mim “Então precisa do comprovante de endereço” “Esse eu trouxe. Junto com o RG,CPF e cartão SUS” “Qual sua idade?” Ela quer testar minha paciência? “49” , respondo prontamente “Ah, então pode ficar, querida “ E recomeça a caminhada até final da fila. Reflito :Somos números. O Estado quer números. Continuo ouvidos. “Se não tivesse vacina, não tinha ninguém”,” E O Pedro já tá vindo?” . Trinta minutos passam. Mais quarentaenovers chegam com máscaras corretas ou no queixo, com narigão de fora, no c* ,tipo bandana no pescoço .Fico irritada, mas ao entrarem na fila ajustam corretamente cobrindo a boca e o nariz ,estamos numa pandemia! Do outro lado do muro, uma escola de educação infantil meio a um bosque. Começa a garoar e sou presenteada com a fragrância de floresta e terra molhada, o que me remete à Serra do Mar . “Esses lanches do BK ficam congelados vencidos durante cinco anos nos Estados Unidos e depois mandam pra gente comer” , “O Lázaro* tá no lugar certo ,na divisa de Brasília ,lá só tem ladrão” ,”Meu pai trabalhou de servente ,eu sou pedreiro”. Desconhecidos iniciam conversas, solitários com olhar distante, conhecidos que vieram de turma, soluções de pendências pelo celular, discussões pelo celular “Acha que eu não sei que você tá saindo com outro?”. 9h30min. “Não interessa pagar caro, tem que sair do jeito que a pessoa quer, né?”,”Lá em casa só eu e o cachorro não pegou covid” , “Aline , o Pedro não achou uma conta ?” 10h. Minha vez Como num toque mágico sou recebida à mesa de identificação com Gentileza. “Idade?Preciso RG,CPF,cartão SUS e comprovante de endereço” Enquanto conferem, o atendente ao tablet digitando pergunta “A senhora se considera de que cor?” “Branca”. O Estado e suas estatísticas. Lembro do meu professor de Estatística que afirmava que ela é uma prostituta :pode-se fazer o que quiser com ela . Dados colhidos e a enfermeira me mostra o frasco “Do Instituto Butantan, Coronavac. Braço esquerdo ,por favor.” Na picada ardida sou invadida pela sensação de alívio,e em 2segundos lembro das incertezas no começo dessa doença,o trabalho exaustivo de pesquisadores , o conflito cloroquiners e quarenteners** ,a política da vacina , a polarização política. E não é que o sol dá as caras . Na saída ,a fila continua do mesmo tamanho e uma mulher acena. Sou quase atropelada pelo Pedro , um jovem de uns quinze anos chegando apressado . *Lázaro é procurado por autoridades policiais de Goiás ** Termos originados na pandemia 2020/21 para aqueles que defendem uso da cloroquina (sem eficácia para COVID-19) e os que cumprem a quarentena. JUNHO/21
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